quarta-feira, 30 de maio de 2012

ANTE A LEI

Antes da lei há um guarda. Um camponês apresenta-se perante esse guarda e solicita que lhe permita entrar na lei. Mas o guarda responde que por ora não pode deixá-lo entrar. O homem reflecte e pergunta se mais tarde o deixarão entrar.
--É possível --diz o porteiro--, mas não agora.
A porta que leva à lei está aberta, como de costume; quando o guarda se coloca a um dos lados, o homem inclina-se para espreitar. O guarda vê-o, risse e diz-lhe:
--Se tanto o queres, experimenta entrar apesar da minha proibição. Mas lembra-te que sou poderoso. E sou apenas o último guarda. De sala em sala também há guardas, cada um mais poderoso do que o outro. E já o terceiro guarda é tão terrível que não consigo suportar o seu aspecto.
O camponês não tinha previsto estas dificuldades; a lei devia ser sempre acessível para todos, pensa ele; mas ao fixar o guarda, com a sua capa de pele, nariz grande e adunco, barba comprida de tártaro, rala e negra, decide que lhe convém mais esperar. O guarda dá-lhe um banquinho e permite-lhe sentar-se debaixo da ombreira da porta. Ali espera dias e anos. Tenta infinitas vezes entrar e cansa o guarda com as suas súplicas. Frequentemente, o guarda mantém com ele breves conversas, faz-lhe perguntas sobre o seu país e sobre muitas outras coisas; mas são perguntas indiferentes, como as dos grandes senhores, e para terminar, sempre lhe repete que ainda não o não pode deixar entrar. O homem, que se muniu de muitas coisas para a viagem, sacrifica tudo, por mais valioso que seja, para subornar o guarda. Este aceita tudo, com efeito, mas diz-lhe:
--Aceito-o para que não penses que deixaste de fazer tudo o que podias.
Durante esses longos anos, o homem contempla quase continuamente o guarda: esquecesse dos demais e parece-lhe que este é o único obstáculo que o separa da lei. Mal diz a sua má sorte, durante os primeiros anos temerariamente e em voz alta; mais tarde, à medida que envelhece, apenas para si murmura. Retorna à infância, e como na sua longa contemplação do guarda chegou a conhecer até as pulgas da sua gola de pele, também suplica às pulgas que o ajudem e convençam o guarda. Por fim a sua vista debilita-se, e já não sabe se há menos luz ou se apenas o enganam os seus olhos. Mas no meio da obscuridade distingue um esplendor, que surge inextinguívelmente da porta da lei. Já lhe resta pouco tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências de esses longos anos se confundem na sua mente numa única pergunta, que até agora nunca formulou. Acena ao guarda para que se aproxime, já que o rigor da morte lhe endurece o corpo. O guarda vê-se obrigado a dobrar-se muito para falar com ele, porque a disparidade de estatura entre ambos aumentou bastante com o tempo, em prejuízo do camponês.
--Que queres saber agora? --pergunta o guarda-- és insaciável.
--Todos se esforçam para chegar à lei --diz o homem--; como é então possível que durante tantos anos ninguém além de mim tenha pretendido entrar?
O guarda compreende que o homem está a morrer e, para que os seus sentidos esmorecidos percebam as suas palavras, diz-lhe ao ouvido com voz tonitruante:
--Ninguém o podia pretender, porque esta entrada era só para ti. Agora vou fechá-la.
Kafka

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