Se escrevermos a pensar no outro
escrevemos com uma caneta de dois bicos e a dualidade do traço esfumará a
precisão, vibra mas não define. O espelho devolver-nos-á uma imagem embaciada.
Alguma coisa se partiu.
Um sentimento de que as minhas coordenadas, passado, historia pessoal, não tem paralelo, nem quando olho para trás, nem agora, neste momento, com alguém que conheça na actualidade. Sempre me imaginei, e assim cresci, um indivíduo de pensamento e de acção. Primeiro desencontro. São coisas dicotómicas, pelo menos para a forma como as pessoas estão arrumadas nesta sociedade. Depois o problema geracional (ocorre-me uma frase com sabor antigo: vi os melhores da minha geração estiolarem ou estoirarem…): desterrado, só pude, como qualquer inadaptado, criar raízes na água ou no ar e nunca me senti fazer parte de uma falange na qual me espelhasse. Sempre à frente ou sempre atrás, nunca ao lado. A idade? Um permanente, constante e idêntico sentimento. Sempre antes ou depois, raramente ao mesmo tempo. E além disso, a idade é uma indumentária a que viver com os outros obriga. O que é real é a memória e a decadência. A memória é dolorosa, ou melhor, ambas o são. A memória é uma tragédia: é um aperto no coração, uma solidão sem solução, sem lenitivo… Mesmo quando recordamos em voz alta, com receio que tanto silêncio possa conduzir ao esquecimento, não compreendem a dimensão do que dizemos e o que nos parecia inacreditável e por isso único, é para os outros apenas inacreditável… Da decadência, física, trata-se apenas da sensação de uma máscara desfigurada mal ajustada, colada ao nosso rosto, e que não conseguimos arrancar.
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