quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

As moscas adivinham a morte
colam-se ao rosto dos vivos

não querem morrer mas
sabem que ninguém se salva
que o inverno virá 
e com as suas chuvas
lavará as mágoas, o tempo pegajoso
e a sua própria vida.

* * *

Entrei naquele café 
onde certas horas e tu própria
ficaram para sempre.

Trágico e perturbador
é não haver testemunhas
ficarmos condenados
à solidão e ao silêncio.

Quando desaparecermos
desaparecerão também 
as recordações
que nos apertam o estômago
que nos enchem os olhos de lágrimas.

Minto.         Exagero.
É o silêncio
a apertar o coração.
Voltaste ao local do crime
mas as cinzas estavam ja frias
e o vazio estava cheio de fantasmas.
A luz que ilumina
em excesso cega.

Passei por aquela esquina
ergui os olhos para aquela janela
revi outra vez aquele quarto
onde o pavimento rangia a cada passo
e onde -- naquela tarde -- a minha vida
poderia ter mudado para sempre.

Já no regresso a casa 
-- onde ninguém me esperava --
cruzei-me com a alegria de um cão
à chegada da dona.

O tempo, esse grande martírio!
Que sendo infinito se esconde
em coisas tão pequenas!
 
O tempo e a água escapam
entre os dedos que os querem agarrar 

O inverno parece pouco a pouco construir a teia que nos envolve. Mesmo sendo esta feita de tantas coisas do passado tem sempre um carácter único que nos transporta ao dia em que o vivemos. Nem sequer está frio hoje, mas estas notas nostálgicas que ouço enquanto escrevo poderiam ser de outro momento?

(Sex,17Dez21)

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Mongólia. Fui ver a Mongólia através dos olhos de Ulrike Ottinger. A planície verde. Os majestosos cabeços redondos. Os garranos convivendo com os camelos. As cores!!!

O outro mundo.

(sex, 22 Out 21)

Estou mesmo na terra de ninguém; as velhas sedentas de amor, já em pânico pela vertigem do fim e que sabem que tudo está destinado à derrocada: depois da devastação do tempo são mais objecto da fraternidade do que do desejo. As jovens, atraentes e desejáveis, mas carregadas de ilusões e entraves, sequiosas de bem-estar, segurança e... futuro. No presente, que é o que interessa, não há ninguém.
Para ter uma vida que mereça ser vivida é preciso ter coragem.
Escrevo para falar com alguém.

(Qui, 21 Out 21)

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

O que lembro das mulheres, são pormenores.

Pequemos factos, grandes lições: como empilhar pratos no lava-louças, ter junto ao espelho da casa de banho sempre um pano para o limpar, como estender uma peça de roupa na corda ou como dobrar uma camisa...

Fora o sexo, a isto se resumiu a educação sentimental...

 No Jardim da Estrela, onde não consigo passar sem pensar em certas horas da minha infância nos alvores da adolescência. (Um ano praticamente sem almoçar, após partir o termo que manteria o almoço morno, deitando fora consecutivamente a comida fria que trazia de casa). As verdadeiras batalhas, na sequências de grandes desafios de futebol no intervalo da hora do almoço em que éramos fechados e abandonados no recinto da escola, com pedras da calçada voando como setas que era preciso evitar mas que podiam atingir, e atingiam, um companheiro ao lado. A formação em coluna dois a dois que atravessava o jardim para ir para as actividades de milícia fascista no edifício sede: fui a primeira vez, serviu-me de reconhecimento. À segunda, numa das curvas do serpeante percurso deixei seguir a coluna e tergiversei para o lado oposto: esqueceram-se de mim, deixei de existir, deixei de pertencer ao número dos arregimentados. E a pena era de chumbar o ano se fosse descoberto!

Também desse ano faz parte a minha estreia a voar na esteia de um carro eléctrico evitando o cobrador e poupando uns cobres para a compra de uma bola de plástico na fábrica que as produzia e que só aguentava um único dia.

A dilatação do tempo! Como se fosse elástico e cada vez se tornasse mais fino, etéreo e efémero. Deixei de escrever como se tivesse deixado de lançar as redes ao mar e mesmo assim suspirasse por apanhar peixe...

 Saber que se para um preço alto é suficiente para nos dissuadir de avançar, mas o verdadeiro impedimento é a descrença no milagre. É preciso muita coragem para atravessar o fogo. Avançar, despindo-nos de tudo. Avançar mesmo que saibamos que após o fogo nos esperam as cinzas.

(Qui, 10 Junho  21)

Sempre! Uma palavra tão perigosa!...

Escorregadia... impossível de segurar na mão, (como um peixe húmido, acabado de retirar da água e que se nega a abandoná-la), assim também essa palavra se recusa a pertencer ao nosso mundo.

(incoercível, 25 de Abril de 2021)

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

 4 da manhã

O que é a insónia? Uma pedra no caminho dos sonhos, um cadáver na nossa cama, uma luz que não se apaga, um buraco no tempo onde sabemos que acabamos por cair exaustos. Uma ideia donde não conseguimos sair. Uma ideia fixa que não desiste de nós. Mas tudo se resume a uma estranha na cama.

Não se pode lutar directamente com ela: é a melhor forma de a manter de pé. 
É preciso desistir para que ela desista de nós.

O que fica é o escrito, dizia-se. Pois será. Mas isso é coisa do futuro. Agora, que é quando o tempo existe, só posso meditar no que tantas vezes dizemos para nós mesmos: estava escrito e isso dá às coisas a força das coisas fatais. 

A morte da minha avó

contada pela minha mãe

ela estava deitada

como uma pedra

sobre um cordel

quando chegou ao pé dela

quis dizer alguma coisa.

Foi humilhada. A minha avó

pegou-lhe no pulso e

obrigou-a a deitar-se a seu lado

só a largou quando

já tinha abandonado este mundo.



(A partir das Flautas no Canavial)

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

 "Gostas da minha praia?", perguntou a miúda à mãe, mostrando-lhe o desenho que fizera.


Voltei ao lugar do desenho

a mesa tinha mudado de sítio

o ângulo era diferente

já não existiam zonas iluminadas

tudo estava envolto na luz uniforme

do crepúsculo.


Deparei-me com um turista esfíngico

sentado ao computador

obnubilando a tomada de vistas

que tinha utilizado


Mesmo assim gravei a cena

para me servir de bengala

e para poder acabar o que tinha

começado


Nunca mais, se tiver que o interromper,

deixarei de registar o local do crime

antes de o abandonar.



  (Cinemateca, 15 de Outubro de 2021)

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Procuro uma mesa para escrever como quem, morto de sede, procura uma fonte ou: como o náufrago procura a tábua que o mantenha à tona.

Estou doente: talvez a pena possa travar o alastrar da loucura do corpo e da mente. As outras fugas têm-se revelado, não um travão mas uma aceleração. Sobretudo do tempo que se some.

Nestes múltiplos caminhos sem saída um há que sendo uma fuga para a frente é uma tergiversação da evasão onírica da leitura: a compra compulsiva de livros que não leio por falta de tempo ele oportunidade limitando-me a aumentar o seu stock iludindo-me como se comprasse o tempo da sua leitura ao mesmo tempo que o livro.

Outro caminho em falso consiste em perder -- sobretudo, mas não só -- coisas. No aperfeiçoamento dessa arte joga forte o brincar às escondidas onde raramente se surpreende o que o destino fez desaparecer.

(...) Desse clima rarefeito (onde se reconhecem afinidades) fazem também parte as coincidências, tramas que constituem o enredo em que vivemos, tanto mais numerosas quando mais atentos estivermos. E dentro desses estados de consciência alterada fazem ainda parte o delírio -- que pressupõe um discurso -- e a visão. A imaginação a partir de um pretexto real pode conduzir aos domínios do sonho com a facilidade com que um sopro incendeia uma brasa mortiça.

Não temos o direito de arranjar companhia para uma viagem suicida.

Os rapazes da minha idade estão velhos. são jovens envelhecidos; por isso os reconheço. 

Todas as caras são um livro. E uma multidão uma biblioteca.

                                                                                                                                

                                                                                                                             (8 de Janeiro de 2020)

 Viver é morrer.

Fui ver um filme em que na acção, entremeada, havia uma cena em que a personagem adormecia. Por fim não se conseguia distingir o que era a realidade ou o sonho da personagem: talvez fosse essa a tese do filme.

                                                                                                                    (6 de Janeiro de 2020)

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Cometo sempre o mesmo erro:
acreditar que os outros vejam
para além do que está à vista.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Voltei a ver o Rio, de Jean Renoir...
O Rio que corre desde Heráclito 
onde já Platão molhou os pés
e que cresceu até ao Tejo que Pessoa viu...
O que é o tempo senão esta continuação?
E  a vida não é se não continuar
Ele corre indiferente a tudo 
e nós ao espectáculo do mundo 
do qual fazemos parte 

segunda-feira, 18 de julho de 2022

 Tempos ásperos:

O sono aos sacões, cheio de bruscas interrupções, a vigília submersa por um quase sonambulismo. Um cansaço constante dado que o descanso é esparso. Tudo pela vida sem arrumação e pelas rotinas desfeitas pelo vórtice dos dias sempre iguais. Sobretudo a falta de um propósito, como de uma mão no leme. O sentimento de um tempo irrecuperável e sempre e só o refrigério da arte, da escrita, tendo sempre presente a definição de Beckett de que 'A arte é a apoteose da solidão'.

Ainda me perguntam porque escrevo? As palavras reencontradas após uma longa ausência são uma bóia de salvação, pedras do caminho e única garantia contra a perdição.


(Ter 19/07/22)

segunda-feira, 6 de junho de 2022

A MEMÓRIA É UMA REPETIÇÃO,

Um eco...
Procurava naquela floresta
um banco onde me sentasse 
e assentasse
o que corria pela cabeça...

O cabelo branco...
a morte a aproximar-se...
Quero bronzear-me!
Fazer um belo cadáver...
(Para começar a morrer
é preciso dar o tiro de partida)
Se pudesse voltar atrás
começava pelo princípio
e nunca diria  
Ah se soubesse o que sei hoje...  
pela simples razão
que outras coisas saberia 

O tempo numa sala de espera
é sempre outra coisa
tem sempre um valor diferente