colam-se ao rosto dos vivos
não querem morrer mas
sabem que ninguém se salva
que o inverno virá
e com as suas chuvas
lavará as mágoas, o tempo pegajoso
e a sua própria vida.
O inverno parece pouco a pouco construir a teia que nos envolve. Mesmo sendo esta feita de tantas coisas do passado tem sempre um carácter único que nos transporta ao dia em que o vivemos. Nem sequer está frio hoje, mas estas notas nostálgicas que ouço enquanto escrevo poderiam ser de outro momento?
(Sex,17Dez21)
O que lembro das mulheres, são pormenores.
Pequemos factos, grandes lições: como empilhar pratos no lava-louças, ter junto ao espelho da casa de banho sempre um pano para o limpar, como estender uma peça de roupa na corda ou como dobrar uma camisa...
Fora o sexo, a isto se resumiu a educação sentimental...
No Jardim da Estrela, onde não consigo passar sem pensar em certas horas da minha infância nos alvores da adolescência. (Um ano praticamente sem almoçar, após partir o termo que manteria o almoço morno, deitando fora consecutivamente a comida fria que trazia de casa). As verdadeiras batalhas, na sequências de grandes desafios de futebol no intervalo da hora do almoço em que éramos fechados e abandonados no recinto da escola, com pedras da calçada voando como setas que era preciso evitar mas que podiam atingir, e atingiam, um companheiro ao lado. A formação em coluna dois a dois que atravessava o jardim para ir para as actividades de milícia fascista no edifício sede: fui a primeira vez, serviu-me de reconhecimento. À segunda, numa das curvas do serpeante percurso deixei seguir a coluna e tergiversei para o lado oposto: esqueceram-se de mim, deixei de existir, deixei de pertencer ao número dos arregimentados. E a pena era de chumbar o ano se fosse descoberto!
Também desse ano faz parte a minha estreia a voar na esteia de um carro eléctrico evitando o cobrador e poupando uns cobres para a compra de uma bola de plástico na fábrica que as produzia e que só aguentava um único dia.
A dilatação do tempo! Como se fosse elástico e cada vez se tornasse mais fino, etéreo e efémero. Deixei de escrever como se tivesse deixado de lançar as redes ao mar e mesmo assim suspirasse por apanhar peixe...
Saber que se para um preço alto é suficiente para nos dissuadir de avançar, mas o verdadeiro impedimento é a descrença no milagre. É preciso muita coragem para atravessar o fogo. Avançar, despindo-nos de tudo. Avançar mesmo que saibamos que após o fogo nos esperam as cinzas.
(Qui, 10 Junho 21)
4 da manhã
O que é a insónia? Uma pedra no caminho dos sonhos, um cadáver na nossa cama, uma luz que não se apaga, um buraco no tempo onde sabemos que acabamos por cair exaustos. Uma ideia donde não conseguimos sair. Uma ideia fixa que não desiste de nós. Mas tudo se resume a uma estranha na cama.
Voltei ao lugar do desenho
a mesa tinha mudado de sítio
o ângulo era diferente
já não existiam zonas iluminadas
tudo estava envolto na luz uniforme
do crepúsculo.
Deparei-me com um turista esfíngico
sentado ao computador
obnubilando a tomada de vistas
que tinha utilizado
Mesmo assim gravei a cena
para me servir de bengala
e para poder acabar o que tinha
começado
Nunca mais, se tiver que o interromper,
deixarei de registar o local do crime
antes de o abandonar.
(Cinemateca, 15 de Outubro de 2021)
Procuro uma mesa para escrever como quem, morto de sede, procura uma fonte ou: como o náufrago procura a tábua que o mantenha à tona.
Estou doente: talvez a pena possa travar o alastrar da loucura do corpo e da mente. As outras fugas têm-se revelado, não um travão mas uma aceleração. Sobretudo do tempo que se some.
Nestes múltiplos caminhos sem saída um há que sendo uma fuga para a frente é uma tergiversação da evasão onírica da leitura: a compra compulsiva de livros que não leio por falta de tempo ele oportunidade limitando-me a aumentar o seu stock iludindo-me como se comprasse o tempo da sua leitura ao mesmo tempo que o livro.
Outro caminho em falso consiste em perder -- sobretudo, mas não só -- coisas. No aperfeiçoamento dessa arte joga forte o brincar às escondidas onde raramente se surpreende o que o destino fez desaparecer.
(...) Desse clima rarefeito (onde se reconhecem afinidades) fazem também parte as coincidências, tramas que constituem o enredo em que vivemos, tanto mais numerosas quando mais atentos estivermos. E dentro desses estados de consciência alterada fazem ainda parte o delírio -- que pressupõe um discurso -- e a visão. A imaginação a partir de um pretexto real pode conduzir aos domínios do sonho com a facilidade com que um sopro incendeia uma brasa mortiça.
Não temos o direito de arranjar companhia para uma viagem suicida.
Os rapazes da minha idade estão velhos. são jovens envelhecidos; por isso os reconheço.
Todas as caras são um livro. E uma multidão uma biblioteca.
(8 de Janeiro de 2020)
Tempos ásperos:
O sono aos sacões, cheio de bruscas interrupções, a vigília submersa por um quase sonambulismo. Um cansaço constante dado que o descanso é esparso. Tudo pela vida sem arrumação e pelas rotinas desfeitas pelo vórtice dos dias sempre iguais. Sobretudo a falta de um propósito, como de uma mão no leme. O sentimento de um tempo irrecuperável e sempre e só o refrigério da arte, da escrita, tendo sempre presente a definição de Beckett de que 'A arte é a apoteose da solidão'.
Ainda me perguntam porque escrevo? As palavras reencontradas após uma longa ausência são uma bóia de salvação, pedras do caminho e única garantia contra a perdição.
(Ter 19/07/22)