segunda-feira, 8 de outubro de 2012


Há algum tempo que não assento a caneta no papel com o pensamento a deslizar na mente, sem o que o dia não fica completo. A minha alma precisa de um repouso tão grande como a sua inquietação. Até onde me pode levar um som ou um odor, o calor ou o frio, uma visão colorida pela imaginação ou pela memória? As horas caem gota a gota como a água na clepsidra: os olhos voam até aonde não consigo ir. Fico em suspenso. Quem quer ser entendido não fala: ainda que o mundo seja feito de palavras, o seu sentido voa com elas.
O Jorge, P.M., estacou há vinte e tal anos. Passamos tantas noites, tantas horas a desenhar o futuro! Antes de partir, como quem pousa as malas na soleira da porta e nos faz um sinal, deixou-me três obras: “Cibernética e Sociedade”, que os meus magros recursos de francês, física e matemática me deixaram apenas digerir na diagonal, os cálidos “Tristes trópicos” que a minha intensa viagem confirmou e cujos ecos não deixaram de ressoar, e “O homem faz-se a si próprio” que, tenho a certeza, o fez decidir-se pela arqueologia como forma de ver o mundo…
Não os li exaustivamente: o primeiro pelas as dificuldades que referi, dos “Trópicos” li a maravilhosa descrição da viagem e saltei o tratado de etnologia da segunda parte e, do livro de Gordon Childe, que abri ao acaso, li alguns capítulos… mas guardo-os religiosamente.
Lamento não poder dizer-lhe que tinha razão: o mundo é sempre aquele que estávamos à espera, mas de uma forma diferente do que esperávamos… menos delirante nas grandes coisas e mais inesperado nas pequenas: sempre igual e sempre diferente, como nós próprios.
Ah… quanto tempo não passaríamos a comentar, nós que nos atirávamos a qualquer assunto que discutíamos como cães a um osso, as diferenças e nuances entre as nossas profecias e a realidade… Hoje, acode-me isto ao espírito, num momento em que parece que as coisas se agudizam e toda a gente espera uma convulsão no modo de vida… Naquela altura, não queríamos outra coisa!… Gostava de asseverar-lhe que no meio da escuridão continuam as luzes acesas que iluminam o horizonte, mas que o que muda é a luz que banha tudo. Que o futuro esteve sempre presente. E, claro, que os mortos estão vivos enquanto viverem connosco.

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