Há algum tempo que não assento a
caneta no papel com o pensamento a deslizar na mente, sem o que o dia não
fica completo. A minha alma precisa de um repouso tão grande como a sua
inquietação. Até onde me pode levar um som ou um odor, o calor ou o frio, uma
visão colorida pela imaginação ou pela memória? As horas caem gota a gota como
a água na clepsidra: os olhos voam até aonde não consigo ir. Fico em suspenso. Quem
quer ser entendido não fala: ainda que o mundo seja feito de palavras, o seu sentido
voa com elas.
O Jorge, P.M., estacou há vinte e
tal anos. Passamos tantas noites, tantas horas a desenhar o futuro! Antes de
partir, como quem pousa as malas na soleira da porta e nos faz um sinal, deixou-me
três obras: “Cibernética e Sociedade”, que os meus magros recursos de francês,
física e matemática me deixaram apenas digerir na diagonal, os cálidos “Tristes
trópicos” que a minha intensa viagem confirmou e cujos ecos não deixaram de
ressoar, e “O homem faz-se a si próprio” que, tenho a certeza, o fez decidir-se
pela arqueologia como forma de ver o mundo…
Não os li exaustivamente: o
primeiro pelas as dificuldades que referi, dos “Trópicos” li a maravilhosa
descrição da viagem e saltei o tratado de etnologia da segunda parte e, do
livro de Gordon Childe, que abri ao acaso, li alguns capítulos… mas guardo-os
religiosamente.
Lamento não poder dizer-lhe que
tinha razão: o mundo é sempre aquele que estávamos à espera, mas de uma forma
diferente do que esperávamos… menos delirante nas grandes coisas e mais inesperado
nas pequenas: sempre igual e sempre diferente, como nós próprios.
Ah… quanto tempo não passaríamos
a comentar, nós que nos atirávamos a qualquer assunto que discutíamos como cães a um osso, as diferenças e nuances entre as nossas profecias e a realidade… Hoje,
acode-me isto ao espírito, num momento em que parece que as coisas se agudizam
e toda a gente espera uma convulsão no modo de vida… Naquela altura, não
queríamos outra coisa!… Gostava de asseverar-lhe que no meio da escuridão continuam as luzes acesas que iluminam o horizonte, mas que o que muda é a luz que banha tudo.
Que o futuro esteve sempre presente. E, claro, que os mortos estão vivos
enquanto viverem connosco.
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